...e de qualquer maneira, Luís não se lembra de como foi parar ali, naquele lugar escuro, úmido e apertado, e não, não é nem de longe o lugar escuro, úmido e apertado dentro do qual ele queria estar naquele momento, pelo contrário, esse lugar parece envolto em brumas, imagens ligeiramente distorcidas, como se vistas através de um vidro coberto por uma fina camada de condensação, ou como se vistas através de olhos cansados e pesados de fumo, bebida ou ácido ou quem sabe até as três coisas juntas, não seria impossível, e em todo caso seria provavelmente mais viável que um sonho, enfim, poderia também ser um sonho, mas isso se ele não tivesse certeza de que está tão desperto, coisa que a latinha de cerveja que praticamente congela sua mão não o deixa esquecer e nisso é muito mais eficaz do que qualquer indagação filosófica a respeito da natureza da realidade, ou do que qualquer livro de Philip K. Dick ou Cortázar. Luís está no meio da pista de dança, atravessando-a à procura. De quem? Não lembra. Pede licença, esbarra aqui, acotovela acolá, precisa se locomover, atravessar o mar de gente indefinida e imprecisa que se avoluma e se espessa na pista de dança e nos corredores obscuros, chegar a algum lugar mesmo sem saber onde, porque navegar é preciso, viver não é preciso, diz o poeta, e nesse instante é como se ele ouvisse o som da voz triste e gritada de Amália Rodrigues se derramando pelas caixas de som ao invés de, ao invés de, ao invés de que mesmo? Luís não sabe, só sabe que anda, anda como se as pernas não lhe pertencessem, e quando ele se dá conta é como se elas não pertencessem mesmo a seu corpo, porque não as sente, seus sentidos estão tomados de assalto pelo ambiente. Os ouvidos, pelos vocais plangentes de Robert Smith, porque agora você se lembra que o que sai das carrapetas do DJ não é fado, bolero ou tango, mas o bom e velho britpop dos eighties, para ser específico “Charlotte Sometimes”, a canção pungente do The Cure que sempre invadiu seus ouvidos com uma sensação arrebatadora, mas que agora é perturbadora, incômoda, labiríntica, como se tirasse os seus pés do chão, não de arrebatamento extático, mas como se fosse um ataque de labirintite, um terremoto dos sentidos, um impacto profundo no ouvido interno, um soco na cara da realidade que quase faz com que seus olhos saltem de tão arregalados para tentar ver além do véu de Maya que embaça tudo à sua frente, e enquanto isso ele anda por entre as pessoas no ambiente apertado e sufocante. Ele busca uma saída, e seus pés se dirigem para a escada em espiral antes mesmo de se dar conta, se dar conta, se dar conta de quê? Preciso parar de beber, ele pensa sem se levar a sério descendo os degraus estreitos de ferro fundido, porque tem certeza de que toda vez que bebe demais pensa exatamente a mesma coisa. Isso quando não tem seus cada vez mais freqüentes brancos, buracos no tecido da memória, freqüentemente no quesito “localização”: Luís não sabe onde está, e tem uma desconfiança amarga de que não é a primeira vez. Também não é a primeira vez que ele vê a aranha verde pendurada em sua teia de corda num dos cantos do teto preto do andar térreo, particularmente visível a partir do antepenúltimo degrau da escada, no sentido de quem desce. A aranha de espuma é gigantesca, deve ser do tamanho de sua cabeça e reluz fosforescente. Só então Luís lembra onde está: U-Bahn. Um bar dark em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. As paredes pintadas de preto, os rapazes e moças, todos de cabelos negros ou pintados de, atendem os clientes usam todos pancake branco e batom roxo, e vestem roupas inteiramente pretas. Ele também está vestido de preto, pois é o código da sua tribo. Ninguém é barrado se entrar vestido de outras cores, mas não seria a mesma coisa. Luís sabe que já não é a mesma coisa há muito tempo. Porque acaba de se dar conta de algo.
O U-Bahn fechou há quase vinte anos.
Agora Luís sabe que está sonhando. Ele tem dessas coisas de vez em quando: a consciência do sonho, aquele instante mágico, aquela epifania que o arrebata, e desta vez, sim, é um arrebatamento, uma excitação percorrendo sua espinha, a certeza de que está vivendo um momento único. O momento em que, ainda sonhando, ele percebe que sonha. escrito por Fábio Fernandes em 4:15 PM
domingo, fevereiro 16, 2003
O Escritor Maldito
Caralho, detesto entrevista. Por quê? Porque vocês jornalistas só fazem perguntas imbecis. O quê? Ah, se eu tô te ofendendo, foda-se. Você tá aqui porque quer, porta da rua é serventia da casa.
Você ta me perguntando quem eu sou? Você estudou filosofia ou é burro mesmo? Não, eu respondo, tudo bem, é bom mesmo: eu sou um escritor maldito, é o que eu sou. Eu escrevo as minhas angústias. Eu não quero nem saber se eu sou ou deixo de ser porta-voz da minha geração. Eu sou mais eu.
Por que é que você fica olhando tanto pras minhas tatuagens? E o meu cabelo? É roxo, nunca viu? O que eu escrevo é muito mais importante que isso, porra. Você tem que falar é do que eu escrevo. Angústia é muito mais importante do que tatuagem ou cor de cabelo.
Ah, vá se foder. Eu sou é bom.