Pequeno Dicion?rio de Arquétipos de Massa

pequenas ficções e alguma crueldade

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domingo, agosto 03, 2003
 
Buraco Negro


O que era mesmo que você tinha que fazer no banheiro?
Os olhos percorrem o armário escancarado atrás do espelho. Então você vê a caixinha de Tranxilene e lembra.
Engole o comprimido em seco.
O pior não é a perda de memória, você pensa. O pior é você não esquecer que está começando a esquecer as coisas. A consciência da perda é o que mais incomoda. Mas os médicos já desenganaram você: não tem jeito, esse tipo de doença degenerativa funciona assim. Chega um ponto em que a única lembrança será a de que você não tem mais lembranças. E você já está tão anestesiado pelos remédios que não consegue mais ficar triste com isso.
Mas o que era mesmo que você tinha que fazer no banheiro?
Você vê a caixinha de Tranxilene e lembra. Engole o comprimido em seco e vai saindo. Anda até a cozinha e vê as horas no relógio do lado do armário da louça.
Você não tinha que ir no banheiro?


segunda-feira, julho 21, 2003
 
Ciborgues


Os primeiros brincos eu coloquei em Londres. 91 ou 92, não lembro bem. Um argolão em cada orelha. Naquela época era legal, eu estava com os cabelos compridos, a cara do Steve Vai (só faltava eu emagrecer uns vinte quilos e saber tocar guitarra que nem esse filhadaputa, mas tirando isso até que eu era parecido). Naquela época já tinha um porrilhão de gente com piercing no umbigo, na sobrancelha, na língua. Mas eu não achava isso legal não: maneiro era tattoo. Conheci um pessoal lá em Portobello Road que me levou num tattoo parlor, é assim que eles chamam lá, supermaneiro, tava tocando Queensryche a todo volume (eu achava meio farofa, sei lá, mas depois alguém colocou um CD do Metallica e ficou mais legal) e fiz a primeira tatuagem: um planeta grande no meu braço esquerdo com uma nave espacial em primeiro plano.
Quando voltei foi um escândalo, mamãe ficou de cama dois dias e meu pai me deu um puta esporro, o que é que você tá pensando da vida? Eu? Eu não tava pensando nada. Só queria tocar meu som e ser feliz.
Mas quando eu fui morar com a turma do Vidal é que foi do caralho. Na época era a maior festa lá em casa, a gente fazia um som lá ou juntava a turma e ia no Garage, lá na Praça da Bandeira. Foi numa dessas que a namorada dele me apresentou a Joana. Maior gata: branquinha, branquinha, cabelo preto comprido. E uma tatuagem de dragão nas costas. Era um dragão vermelho enorme, só dava para ver a cabeça dele quando ela jogava o cabelo de lado. Só fui ver o bicho todo quando levei ela lá pra casa. A cauda do dragão terminava no reguinho da bunda dela. Coisa louca.
O meu dragão não ficou tão grande, mas ficou maneiro. Fiz no peito. Não tenho muito pêlo mesmo, raspei o tufo que tinha bem no meio e mandei o cara tascar lá.
Um dia ela chegou lá em casa com um piercing no nariz. Sabe que ficou bonito pra cacete? Aí eu perdi a bolação que eu tinha com isso e coloquei um também. Também, eu já tinha uns três brincos em cada orelha, pra que ficar de frescura? Eu só não queria fazer na língua (que nem o que ela fez depois, mas o dela ficou legal) porque tinha receio de me atrapalhar na hora de cantar.
Hoje a gente tá comemorando dez anos juntos. Não é mole. A gente chegou a se separar umas duas vezes, mas foi por pouco tempo, a gente nem conta. Da segunda a gente brigou feio, ela até quebrou uma garrafa de cerveja na minha cabeça. Levei oito pontos. Ainda bem que nessa época eu já tinha raspado a cabeça. Pensei que ia deixar cicatriz, e isso ia estragar a tattoo de teia de aranha que eu fiz. Mas não, ficou perfeito. Ficou tão legal que depois ela também raspou a cabeça, mas não tatuou em cima não: colocou um código de barras enorme na nuca, ficou muito maneiro. E logo embaixo, as seguintes palavras: os ciborgues também amam. É ou não é pra ter orgulho de uma mulher dessa?
A última que a gente fez foi juntos, pra celebrar o nosso amor. Sente só: tatuei o nome dela no meu pau e ela tatuou o meu na testa da buceta, logo em cima da rachinha. Na boa, não é lindo?


domingo, julho 06, 2003
 
Dois microcontos

I
Nada no mundo podia separá-los.
E então veio o asteróide.


II
- Não se resolve nada com violência - disse o filósofo ao kickboxer, segundos antes de apertar o gatilho.
- Eu sei - respondeu o kickboxer ao se desvencilhar do revólver e quebrar a espinha do filósofo em dois lugares.


quinta-feira, junho 12, 2003
 

O Incrível Homem que Encolheu

Você vomita mais uma vez. É a terceira vez hoje. Mas você acha pouco.
Como é que as pessoas podem ser tão cruéis?
Você era tão gordo. Sempre foi. Pior do que chamar você de gordo é dizer que você está tão bem, que nunca teve nada, que está excelente do jeito que está.
Dizer que você é magro é a pior ofensa.
Você vomita mais uma vez. Pedacinhos de fruta flutuam na água verde do vaso. Parece iogurte. Você sente náuseas só de pensar em comida.
Você tem inveja de faquires indianos, de modelos anoréxicas, de todo mundo que só consome o suficiente para se manter de pé. Você tem ódio de comida.
Você vomita mais uma vez. Já é a quarta. Não há mais o que botar para fora. Mas você acha pouco. Não vai descansar enquanto não estiver desintoxicado, pleno, limpo.

quinta-feira, maio 22, 2003
 
Tem arquétipo novo na revista Givago, do Emílio Fraia. Não dá pra colocar a URL exata do conto porque ele está em flash, mas não tem mistério: basta, na home, clicar no banner Histórias de Transtornos. Cliquem e ele abrirá uma janela menor com um pequeno índice. O meu é o conto número 5 - um arquétipo inédito chamado Lobisomens.

E vem mais coisa aí, aguardem.


sexta-feira, maio 02, 2003
 

A Arte da Guerra

É assim: enfie a faca sempre abaixo do peito, três ou quatro dedos abaixo do centro. É nesse ponto que fica o diafragma. É o ponto mais macio dessa área, porque não tem osso. Enfiar um objeto perfurocortante no peito de alguém é algo que só pode fazer quem tem muita força no braço, porque senão corre o risco da faca ficar presa no esterno, e pra tirar não é fácil. Mesma coisa nas laterais: acontece muito com baionetas. Se você enfia a baioneta no flanco de um sujeito, tem que ser abaixo das costelas, na região dos rins. Caso contrário, a ponta da baioneta fica presa na carcaça do morto e você tem duas opções: ou deixa a arma onde está e corre o risco de uma corte marcial por deserção ou comportamento covarde em batalha (faziam isso muito na França, na época da Primeira Guerra) ou tenta retirar à força e morre tentando, porque logo vem um compatriota do cadáver e enfia a baioneta nas suas costelas. E aí começa tudo de novo.
Entendeu? Enfie a faca sempre, mas sempre abaixo do peito. O cara vai sofrer, e não vai morrer na hora. Mas sem ar ele não tem força, e vai ficar incapacitado. Aí é só terminar o serviço com calma. E limpeza, que é fundamental.
Entendeu tudo mesmo? Então pode ir. E não me volte aqui sem a cabeça daquele filho da puta.


segunda-feira, abril 14, 2003
 


Bruxas

Aqueles olhos. E aqueles lábios.
E como ela fodia bem.
Depois, quando tudo tivesse passado, você chegaria à conclusão de que foi justamente por aí que ela te enfeitiçou. Pela buceta.
Sejamos francos: você gostava de exibir aquela mulher. Gostava de se sentir amo e senhor de uma criatura bonita e sensual, que atraía o desejo dos homens e a inveja das mulheres. E ela era só sua.
E você era só dela.
No começo tudo bem, era o que você queria. Até começarem as crises de ciúmes.
Que eram apenas um pretexto. Porque tudo era motivo para briga.
Era uma relação sadomasoca, mais do que você gostaria de admitir. Porque não se restringia só à cama.
E acabou como sempre acaba esse tipo de relação. Na porrada. Você não se orgulha disso.
Até hoje, quando você saiu com os amigos que a conheceram, ocasionalmente algum deles faz a pergunta: por onde anda ela?
E a mesa faz um minuto de silêncio.
Você não tem a menor idéia de onde anda aquela mulher que te enfeitiçou.
Mas que ela existe, existe.


segunda-feira, março 31, 2003
 


A Guerra dos Mundos

porque é assim, entendeu, porra? não vou dar mole pra ninguém, vai pegar geral. se alguém abrir loja hoje lá embaixo vou passar o cerol. polícia se quiser vir que venha, foda-se. não vou pagar mais merda nenhuma pra esses filhadaputa. não quero mais saber, aí: quando pleiboizinho vem aqui comprar pó e se fode lá embaixo chega logo o paizinho pra liberar. aqui não tem pai nem mãe não, porra. aqui ninguém tem pai nem mãe. aqui é tudo fudido.
o pessoal lá embaixo vai se cagar nas calças. é bom mesmo eles se fuder de vez em quando pra ver como é que é aqui todo dia. vai ser o terror. polícia se subir vai tomar teco nos cornos. agora é guerra.


quarta-feira, março 19, 2003
 

O Mito do Herói

É, meu amigo Charlie. Era um garoto que amava Blur e Radiohead. Foi lutar pela pátria. Com soldados armados, amados ou não. Não há luar, ó gente, ó não, luar como esse do sertão que é o deserto. No rancho do seu pai no Texas também era assim, ou quase. Só não tinha esse bombardeio todo, esse calor desmesurado, essa sede. E agora, Joseph? Minnesota não há mais. Os cães de guerra ladram e a caravana passa. Tudo passa, tudo sempre passará. A morte vem em ondas como as dunas. E o mundo é apenas um retrato na parede. Mas como dói.

quinta-feira, março 13, 2003
 


O Imortal

Nasceu pobre, no interior. Nunca tinha visto o mar: era esse um dos seus sonhos. Escreveu um poema sobre um barco sem saber qual era a sensação de estar dentro de um.
Viajou para a capital, tão bonita com suas luzes. Teve iluminações.
Foi lá que conheceu o amor. Amores. Dez corações de uma vez para poder se apaixonar.
Levou um tiro do amante louco de ciúmes; escapou e foi para a África traficar armas. Escapou da bala, mas não da doença que o corroeu e o matou ainda novo. Não tinha vinte e cinco anos.
Nunca mais escreveu poemas. Não precisava: ao morrer, havia vivido tantas vidas numa só. Vai, Arthur, ser gauche na vida.