Pequeno Dicion?rio de Arquétipos de Massa

pequenas ficções e alguma crueldade

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sexta-feira, janeiro 24, 2003
 



Monstro (para Dalton Trevisan)

Não fui eu. Nem conhecia essa menina. Não faço essas coisas, imagina, uma menina tão novinha, tinha o que, nove anos? Oito? Imagina, sou casado, tenho um filho quase da idade dela, pelo amor de deus, seu delegado. Doutor delegado, desculpe. Eu também sou doutor, o senhor sabe. Clínico geral. Dezesseis anos já. Mas não fui eu. Eu nunca faria uma coisa dessas, coitadinha, estuprar a menina e depois afogá-la no rio? Que barbaridade, que crueldade, quem fez isso tem que pagar, tem que sofrer muito na cadeia. Virar mulher na cela. Ou coisa pior. É, a vida é assim. Coitada da menina, tão novinha, tão bonitinha, morrer assim tão machucadinha, apertadinha, sufocada. Estrangulada e afogada, tadinha. Tão lindinha. Como eu sei que ela foi estrangulada antes? O senhor mesmo disse, não disse? Não?


segunda-feira, janeiro 20, 2003
 


A Múmia

Deitada em sua cama, a múmia observa. Apenas observa: há muito não faz outra coisa.
Seu único consolo é que ninguém sabe o que ela pensa. Às vezes nem ela própria. Basta-lhe ouvir as pessoas entrando e saindo do seu quarto, o chocalhar dos vidros de remédio e o pingar incessante do soro ao lado da cama. Às vezes a múmia pensa que pode ouvir as próprias rugas se formando na pele encarquilhada. Como anéis e marcas em troncos de árvores. A múmia acha que leu alguma coisa a respeito em algum lugar. Mas já faz muito tempo.
Ninguém sabe quantos anos a Múmia tem. Nem ela mesma.
Deitada em sua cama, como se embalsamada fosse, a múmia espera sua hora.