Teve um enfarte dentro da sala escura, na última sessão. Além dele, só um casal de namorados ao fundo, que, ao contrário do clichê, não só não estava aos beijos e abraços como também estava prestando bastante atenção ao filme, veja lá se iam ficar interessados no homem na terceira fileira.
No começo era apenas uma dormência no braço esquerdo, mas o homem trocou de posição. Mais alguns minutos e o homem começou a sentir um suor frio e uma ligeira pressão na região do tórax. Ainda pensou que fossem gases, mas a pressão no peito aumentou.
Teve vontade de se levantar; não conseguiu. Pensou em se virar para acenar para o projecionista ou para quem estivesse atrás, mas não sentia mais o braço.
Tentou abrir a boca. Nada.
Útero materno o cacete, pensou ao se lembrar de uma metáfora famosa para a sala escura do cinema. Quando o coração arrebentou, a última palavra que lhe veio à mente foi túmulo.
E ele estava achando o filme uma merda.
Parei de tomar o remédio tem dois dias. Antes do remédio, insônia, angústia, ansiedade, vontade de chorar, vontade de dar porrada, de cortar os pulsos, de tomar alguma coisa só pra poder simplesmente descansar, dormir e não acordar mais, você entende? Não era pra me matar.
Depois do remédio, gordo, gordo, gordo, engordei, fiquei cheio de espinhas, perebinhas, a caspa aumentou, tem seborréia até na sobrancelha, semana passada descobri uma poeirinha esquisita nos cílios.
Foda-se a calma. Parei com o remédio tem dois dias. A vontade de cortar os pulsos já voltou, mas pelo menos as espinhas sumiram.
Felipe é engenheiro. Desde pequeno gostava de consertar aparelhos eletro-eletrônicos. Os pais viram que ele tinha jeito, e quando cresceu o bastante foi estudar numa escola técnica.
O tempo passou e Felipe cursou Engenharia Eletrônica na faculdade. Acabou indo trabalhar para uma empresa japonesa de robótica avançada.
No começo tudo eram flores. Felipe tinha contato direto com a vanguarda da tecnologia de robôs industriais, trabalhava com a nata dos projetistas da área, e estava até estudando japonês para tentar um estágio na sede da empresa em Tsukuba.
Até o dia em que foi encarregado da supervisão de um grande lote de robôs para uma empresa. Ao conversar com o executivo-chefe da empresa, este lhe fez a pergunta, à queima-roupa:
Quantos operários cada robô vai poder substituir?
Isso incomodou a Felipe. Ele nunca leu - nem pretende ler - Marx, mas era inteligente o bastante para ver que a exploração do capital na mão de alguns tendia a entrar no auge a partir dessa substituição por robôs.
Felipe é bastante racional para não sofrer além da conta com isso. Sabe que se não for ele a fazer esse serviço, outro o fará, até o dia em que ele próprio seja substituído por um robô, e depois virá o quê? Felipe estremece quando pensa nessas coisas.