Pequeno Dicion?rio de Arquétipos de Massa

pequenas ficções e alguma crueldade

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quarta-feira, janeiro 01, 2003
 


Utopia

Vejam este mundo: as ruas das cidades são retas e limpas, não se vê traço de poluição no ar límpido, nem outros ruídos que não o som de um bicho ocasional. Este é um mundo tranqüilo e silencioso.
Este é o sonho de um utopista. Um dia, ele sonhou com um mundo perfeito, onde as doenças e a guerra fossem de vez erradicadas e todos compartilhassem de lucro e felicidade.
Todos, entenda-se, os que merecessem.
Os primeiros a morrer foram os negros. Seguidos de perto pelos judeus. Os asiáticos levaram muito mais tempo.
O processo todo durou décadas. Mas a utopia era persistente.
Quando todas as raças ditas impuras haviam sido erradicadas, o restante da raça humana cabia numa ilha do tamanho da Inglaterra.
E então começou o extermínio.
Primeiro a classe operária caiu; depois os funcionários públicos, e em seguida a classe média.
O que sobrou da elite não daria para encher um estádio de futebol. Mas eles se mataram mesmo assim.
Vejam este mundo: as ruas das cidades são retas e limpas, não se vê traço de poluição no ar límpido, nem outros ruídos que não o som de um bicho ocasional.
A utopia é um mundo desabitado.


segunda-feira, dezembro 30, 2002
 


Depois do fim do mundo

Tá lá o corpo estendido no chão. Mas não há nenhuma janela aberta de frente pro crime, e esse é todo o problema, porque a vitima ainda respira.
E como dói.
Ela está tão fraca que não consegue mover um músculo. Respirar dói tanto que algo dentro dela a alerta de que deve ter algumas costelas quebradas, mas esse algo é tão distante neste momento que no instante seguinte ela não se lembra mais.
Só a dor permanece.
Por fora, é só a dor. Por dentro, o corpo queima. A cabeça arde. A vagina parece cauterizada. Por entre as tiras da saia e o que restou da calcinha enrolada no tornozelo direito, ela ainda consegue sentir, muito lentamente, o esperma percorrer o caminho que vai dos grandes lábios à nadega, para pingar no chão molhado e sujo.
A boca está tão seca que ela mal consegue abri-la. E se a abrisse, que diferença faria? A primeira coisa que um dos estupradores fez (porque foram vários) foi lhe dar uma gravata bem aplicada no pescoço.
Tenta se levantar. E então percebe que não está sentindo nem os braços nem as pernas.
Parece o fim do mundo. O problema é que o mundo nunca chega ao fim. Sempre há um depois, e para ela também haverá.