Esta é óbvia, você dirá. Todo mundo se sente invisível de vez em quando.
Mas sempre, o tempo todo, não.
O rapaz era... como era mesmo o rapaz? Pergunte a qualquer um, e todos lhe darão a mesma resposta. Não sei, sei lá. É um rapaz como outro qualquer.
Mas como é um outro qualquer?
Aliás, quem é mesmo esse rapaz?
Ninguém sabe. Ninguém vê esse rapaz.
Até poderiam, se quisessem. Se soubessem que ele estava lá, do lado deles, quieto, mexendo seu café com a colherinha sem fazer barulho. E ainda que fizesse, quem ouviria?
Ninguém. Porque ninguém ouve esse rapaz.
Ele também não faz força para aparecer. Que ele tem medo até seria óbvio, se alguém o olhasse por um instante e visse o seu rosto.
Mas como é mesmo o rosto desse rapaz?
Júlio era o que se podia chamar de um rapaz empreendedor: com apenas vinte e quatro anos, montou seu próprio negócio. Ainda morando com os pais, um casal bonito, saudável e bem-estruturado de classe média, ele ampliou o próprio quarto, comprou um carro, saía nos fins-de-semana com os amigos. Júlio era um rapaz feliz.
Um dia, porém, a rua amanheceu com as sirenes da polícia. Durante a madrugada, Júlio matou os pais a golpes de barra de ferro e facadas. Pelo menos quarenta em cada corpo. O que restou foi queimado.
Nos primeiros dias, Júlio negou, chamou um advogado. A alegação da defesa era a de que ladrões haviam invadido a residência. Não havia uma prova que confirmasse isso.
Não adiantando mais, mudou-se a estratégia. Nova alegação: perda súbita da sanidade, motivada por violenta emoção. Para justificar isso, tudo foi aventado: os pais viviam brigando, o pai tinha uma amante, a mãe também, ele apanhava quando criança. Nenhuma dessas hipóteses foi confirmada.
Mas o advogado era bom. Júlio foi condenado, mas pôde cumprir a pena em liberdade por ser réu primário.
Hoje, Júlio é o que se pode chamar de homem de visão: seu pequeno negócio prosperou, ele hoje é dono de uma grande cadeia de lojas, e ainda encabeça uma ONG cujo objetivo é lutar contra a violência urbana. Júlio é um homem feliz.
1944. Uma vala arde ao longe na noite. Os olhos de Moshe acompanham impotentes e silenciosos o cortejo que segue até a beira da pira. Ele tem dezoito anos, e está em Auschwitz.
Subitamente, a imagem se fecha num zoom sobre a vala, e então Moshe consegue ver com nitidez o que está queimando nela.
Crianças e velhos.
Moshe se sente sufocar. Quer gritar, mas não consegue.
Então seus olhos se voltam para uma figura quase ao seu lado à beira da vala. É um louro alto de queixo quadrado e monóculo. Usa o uniforme da SS.
O que mais aterroriza Moshe é a expressão no rosto do nazista que supervisiona a operação de descarga dos cadáveres. O oficial da SS não parece muito mais velho que ele, e no entanto como são diferentes: o alemão olha para os judeus como se eles não existissem. Não, pior, como se os judeus fossem coisas, e não seres vivos. A expressão no rosto do nazista é de indiferença clínica.
O silêncio acaba neste instante. Moshe grita.
E acorda. No bairro do Brooklyn, Nova York, 1996. Ele tem 70 anos, e está na América.
Neva lá fora, mas no peito e na alma de Moshe as valas com as crianças e os velhos arderão para sempre.
Não consegue dormir. Apalpa a mesinha de cabeceira à procura do controle remoto e liga a TV. Na reprise de um talk show famoso, uma mulher com cara de maluca viciada afirma categoricamente ter sido seqüestrada por um disco voador e submetida a experiências pelos alienígenas.
Com um suspiro dolorido, Moshe levanta o braço e olha fixo o azul esmaecido do número tatuado. Os alienígenas dele foram piores.
Madalena sonhava com bois. Não os bois plácidos soltos no pasto, não os bichos alegres e coloridos dos livrinhos infantis; Madalena sonhava com bois enormes, imensos, aterrorizantes bois da cara preta, que pegavam as crianças, como na canção de ninar. Madalena acordava chorando, pedindo pela mãe, que vinha lhe dar carinho no meio da noite.
Madalena cresceu. Sonhava com labirintos de corredores estreitos e compridos, no final dos quais sempre havia um monstro, uma criatura que ela jamais via mas cuja existência sentia e não podia duvidar. Madalena acordava sempre um momento antes do encontro fatal, sufocada, sem fôlego, úmida entre as pernas. No dia seguinte conversava com a mãe, pedia conselhos.
Madalena virou gente grande. Casou-se com o namorado da adolescência, que engordou, ficou enorme, imenso. Teve filhos, lindos, mimados, que lhe tomavam o dia inteiro. Parou de trabalhar. Engordou, ficou velha antes do tempo. Madalena não pede mais pela mãe. A mãe morreu. E ela sabe que não adianta mais acordar.